Poesia




Tenho uma Saudade tão Braba

Tenho uma saudade tão braba
Da ilha onde já não moro,
Que em velho só bebo a baba
Do pouco pranto que choro.

Os meus parentes, com dó,
Bem que me querem levar,
Mas talvez que nem meu pó
Mereça a Deus lá ficar.

Enfim, só Nosso Senhor
Há-de decidir se posso
Morrer lá com esta dor,
A meio de um Padre Nosso.

Quando se diz «Seja feita»
Eu sentirei na garganta
A mão da Morte, direita
A este peito, que ainda canta.

Vitorino Nemésio, in "Caderno de Caligraphia e outros Poemas a Marga"

A escolha deste poema deve-se ao facto da maneira como o poeta exprime a sua angustia em relação à morte, mas ao mesmo tempo a certeza de que deve morrer. Tem a consciência que algo o destina ao fim e que não merece nada, nem mesmo a dó dos seus parentes.


Que Bem Sabe o Amor Constante

Até no carro te canto,
Fala a fala, seio a seio,
Espantado de um encanto
Que mais parece receio

De te perder à partida
Pra te ganhar à chegada,
Pois tu és a minha vida
Na ida e volta arriscada.

Vai o Godinho ao volante
Com seu ar de conde antigo
Que bem sabe o amor constante
Que me aparelha contigo.

Poupado na gasolina,
Discreto na confidência,
Navegador à bolina
Dos rumos da nossa ausência.

Leva-me à Embaixada, ao almoço:
Travou, mas não sei que tenho:
Um resto de ardor de moço
Contigo no meu canhenho.

Vitorino Nemésio, in "Caderno de Caligraphia e outros Poemas a Marga"

A escolha deste poema deve-se ao facto do poeta exprimir o que sente, quando está apaixonado. Pensa nessa pessoa em qualquer sitio, cheio de encantos e receios, de saudades e entrega. Mesmo distantes, o amor não deve ser  passageiro apenas quando estão juntos, mas sim constante na sua ausência.


Já não Escreverei Romances

Já não escreverei romances
Nem contos da fada e o rei.
Vão-se-me todas as chances
De grande escritor. Parei.
Mas na chispa do verso,
Com Marga a aquecer-me,
Já não serei disperso
Nem poderei perder-me.
Tudo nela é verbo e vida;
Xale, cílio, tosse, joelho,
Tudo respinga e acalma.
Passo, óculos, nada é velho:
Quase corpo, menos que alma.
Já não lavrarei novelas,
Ultrapassado de ficto:
A vida dá-me janelas
A toda a extensão do dicto.
Mas sem elas, mas sem elas
(As suas mãos) fico aflito.

Vitorino Nemésio, in "Caderno de Caligraphia e outros Poemas a Marga"

A escolha deste poema deve-se ao facto das esperanças do poeta em relação ao amor terem terminado. Ao facto de já não se querer dispersar-se em contos de fada, perder-se nas fantasias do amor, mas ao mesmo tempo saber que tudo na pessoa que ama é vida, que o acalma e irrita, e que por muito que a vida lhe dê oportunidades, nunca serão bem aproveitadas sem a pessoa por quem está apaixonado.



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